Das nove obras indicadas no programa da prova de Língua Portuguesa e Literaturas, apenas o poema Monólogo de uma sombra não foi abordado. A maioria das questões cobrou aspectos literários dos livros, mesmo quando associados ao uso sintático-semântico de termos da língua portuguesa. A última questão, no entanto, explorou apenas pontos gramaticais, mesmo apoiada em trechos de obra literária. As demais questões, como já me referi, foram propostas no sentido de verificar o conhecimento do vestibulando, relacionando as obras ao contexto e ao teor literário de sua produção.
É o caso da 1ª questão ("Singularidades de uma rapariga loura", Dois perdidos numa noite suja e O matador), em que se pedia a identificação do realismo nos excertos como escrita literária e/ou como período literário. Como escrita literária, os trechos das três obras apresentam as características apontadas por Harry Shaw; por outro lado, apenas o fragmento do conto de Eça de Queiroz foi produzido no período realista.
Ao solicitar ao candidato a explicação do uso proclítico em início de frase na fala do personagem Tonho, na 2ª questão, não bastava apenas apontar a coloquialidade desse uso. Pelo gabarito já divulgado, esperava-se que o vestibulando associasse esse uso à intencionalidade de imprimir realismo ao diálogo entre os personagens.
Na 3ª questão, esperava-se que o candidato reconhecesse as figuras de linguagem presentes nos fragmentos. Elas articulam o uso linguístico de termos da língua portuguesa ao fenômeno literário.
A 4ª questão, abordando a narrativa moçambicana Terra sonâmbula, dividiu-se em dois itens. O primeiro cobrou do estudante o conhecimento sintático-semântico, isto é, esperava-se que o vestibulando articulasse as ideias de causa e consequência ao personagem a que o trecho se refere, Taímo. O segundo item pediu um neologismo, explicado também do ponto de vista literário.
Puramente gramatical foi a 5ª e última questão, sem qualquer relação a explicação literária.
De maneira geral, a prova de Língua Portuguesa e Literaturas desse vestibular da UFES articulou conhecimento linguístico e literário.
Entre os links deste blog, encontram-se os atalhos para acessar as provas e as respostas esperadas.
Quem sou eu

- Professora Virgínia
- "Ao fundo sou eu, mas será verdade / que sou? O fundo é que me inventa? / Terei mesmo essa identidade / feita de tinta apenas?" Palavras que respiram por Miguel Marvilla
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
domingo, 19 de janeiro de 2014
Comentário sobre a 3ª questão da prova de Redação do Vest UFES 2014
A questão propõe a redação de uma carta, cujo destinatário é o presidente de uma associação de caminhoneiros, sobre uma das frases que geralmente se lê na traseira de um caminhão. A partir dessa escolha, o candidato determinaria o tema da questão. O assunto é preconceito: contra a mulher, no caso da primeira frase; contra o pobre, no caso da segunda; contra o Estado capixaba, se for a terceira frase; e contra a característica étnica, se for a quarta frase.
O remetente da carta poderia ser qualquer indivíduo que não concordasse com a reprodução preconceituosa de certos valores que ainda persistem em nossa sociedade ou mesmo alguém que se sentisse ofendido com a ideia veiculada na frase. Em ambos os casos, a carta deveria expressar discordância em relação à veiculação da frase preconceituosa. Pode-se argumentar apontando as conquistas que o segmento social discriminado tem conseguido ao longo da história e, sobretudo, mostrar ao destinatário as consequências legais que a continuidade da difusão dos chamados "dísticos" de caminhão poderia acarretar.
Em suma, o gênero "carta" também não é desconhecido pelo vestibulando, como também os temas a serem desenvolvidos são amplamente abordados em sala de aula do ensino médio. Também essa questão não apresentou coletânea de apoio, valorizando-se assim o conhecimento que cada candidato teria sobre o tema desenvolvido.
O remetente da carta poderia ser qualquer indivíduo que não concordasse com a reprodução preconceituosa de certos valores que ainda persistem em nossa sociedade ou mesmo alguém que se sentisse ofendido com a ideia veiculada na frase. Em ambos os casos, a carta deveria expressar discordância em relação à veiculação da frase preconceituosa. Pode-se argumentar apontando as conquistas que o segmento social discriminado tem conseguido ao longo da história e, sobretudo, mostrar ao destinatário as consequências legais que a continuidade da difusão dos chamados "dísticos" de caminhão poderia acarretar.
Em suma, o gênero "carta" também não é desconhecido pelo vestibulando, como também os temas a serem desenvolvidos são amplamente abordados em sala de aula do ensino médio. Também essa questão não apresentou coletânea de apoio, valorizando-se assim o conhecimento que cada candidato teria sobre o tema desenvolvido.
Comentário sobre a 2ª questão da prova de Redação do Vest UFES 2014
Diferente da primeira, a questão propõe uma hipótese de edição de revista que trata de assuntos ambientais. O candidato deveria redigir um editorial defendendo o uso da bicicleta como meio de transporte alternativo para os problemas do trânsito. Esse é o tema. O editorial de uma revista, por sua vez, constitui um gênero textual que representa a posição ideológica do veículo de comunicação, nesse caso voltado para o meio ambiente. Sem coletânea de apoio, o candidato poderia apresentar quaisquer argumentos que comprovassem a eficácia do meio de condução alternativo - a bicicleta - para solucionar problemas da mobilidade urbana. Apresento algumas ideias:
1 - Utilização da bicicleta como solução para diminuir a enorme quantidade de automóveis em circulação e a consequente diminuição de emissão de poluentes. A esses efeitos, podem-se acrescentar outros, como a economia do ponto de vista financeiro e os benefícios à saúde do ciclista.
2 - Construção de ciclovias com menos investimentos, em relação aos custos com ampliação de avenidas.
3 - Redução de problemas com transporte coletivo.
4 - Diminuição de acidentes de trânsito e, consequentemente, de vítimas. Se o candidato soubesse de alguma estatística sobre acidentes de trânsito, seria interessante colocar.
Esses e outros elementos, a partir do conhecimento de mundo e das leituras de cada um, podem ser estruturadores de um editorial, que teria uma introdução apresentando imediata e objetivamente o TEMA e a TESE (parágrafo inicial), um desenvolvimento (dois parágrafos com ARGUMENTOS em defesa do uso da bicicleta como solução para a mobilidade urbana) e uma conclusão (parágrafo final) em que se cobraria do poder público as medidas necessárias para estimular o uso desse transporte barato e saudável.
Enfim, o editorial é um gênero do tipo dissertativo-argumentativo, amplamente abordado na preparação dos candidatos para a prova de Redação. Não é a primeira vez que a Banca Examinadora da UFES propõe esse gênero, nem o tema também é tão distante de nossa realidade. A novidade, nessa prova, é que não houve textos de apoio, dificultando a abordagem do tema para aquele que não tem o hábito de leitura, mas, por outro lado, deixando ao candidato a escolha de seus próprios argumentos.
Enfim, o editorial é um gênero do tipo dissertativo-argumentativo, amplamente abordado na preparação dos candidatos para a prova de Redação. Não é a primeira vez que a Banca Examinadora da UFES propõe esse gênero, nem o tema também é tão distante de nossa realidade. A novidade, nessa prova, é que não houve textos de apoio, dificultando a abordagem do tema para aquele que não tem o hábito de leitura, mas, por outro lado, deixando ao candidato a escolha de seus próprios argumentos.
Comentário sobre a 1ª questão da prova de Redação do Vest UFES 2014
Escrever uma crônica sobre a própria experiência de escrita na escola básica - tema da questão - representa uma proposta audaciosa e inclusiva, pois supõe a presença de um sujeito - o candidato - que usará a memória para construir seu relato. Ao mesmo tempo que narra tal aspecto de sua vivência escolar, o cronista poderá exercer sua crítica quanto à abordagem dessa faceta da educação brasileira e à necessidade de engajamento do cidadão, pela escrita, em nossa sociedade letrada. Quem passou pela educação básica sabe que a presença da escrita na vida de um estudante geralmente se dá menos por prazer e mais por obrigatoriedade, seja em provas escritas, seja em processos seletivos. Em seu relato, possivelmente o cronista abordará as facilidades ou as dificuldades vividas, a relação com seus professores e as condições de produção, conforme seu ambiente escolar, sem citar nomes, obviamente. Na resposta, o candidato usará a primeira pessoa, com um texto bem pessoal sobre o tema, pois não se propõe qualquer situação simulada ou hipotética; pelo contrário, pede-se a experiência do indivíduo. Nesse caso, a mão do examinador possivelmente pesará sobre a estruturação do gênero "crônica", a abordagem do tema de forma subjetiva e ao mesmo tempo crítica, assim como o uso adequado da língua portuguesa em seu registro culto. A coesão e a coerência do texto também deverão ser muito valorizadas no processo textual. Nota dez para a proposta.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
Obras literárias para o vestibular UFES 2015
Excelente medida a diminuição do número de livros indicados para o vestibular da UFES em 2015. Agora o candidato aos cursos que incluem prova discursiva de Literaturas de Língua Portuguesa (brasileira, africana e portuguesa) na segunda etapa vão ler 7 obras. A lista ainda é extensa, mas representa um avanço no programa da disciplina. Vejam a indicação:
I Dois perdidos numa noite suja - Plínio Marcos (teatro)
II Terra sonâmbula - Mia Couto (narração/romance)
III Zero - Douglas Salomão (poesia)
IV Ai de ti, Copacabana - Rubem Braga (narração/crônicas)
V Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres - Clarice Lispector (narração/romance)
VI Primeiras estórias - Guimarães Rosa (narração/contos: "Famigerado", "A menina de lá", "A terceira margem do rio", "Pirlimpsiquice" e "Darandina")
VII O livro de Cesário Verde - Cesário Verde (poesia)
Mantiveram-se os quatro primeiros do vestibular de 2014 e incluíram-se os três últimos. Produzirei apostila para os candidatos interessados. Aguardem!
I Dois perdidos numa noite suja - Plínio Marcos (teatro)
II Terra sonâmbula - Mia Couto (narração/romance)
III Zero - Douglas Salomão (poesia)
IV Ai de ti, Copacabana - Rubem Braga (narração/crônicas)
V Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres - Clarice Lispector (narração/romance)
VI Primeiras estórias - Guimarães Rosa (narração/contos: "Famigerado", "A menina de lá", "A terceira margem do rio", "Pirlimpsiquice" e "Darandina")
VII O livro de Cesário Verde - Cesário Verde (poesia)
Mantiveram-se os quatro primeiros do vestibular de 2014 e incluíram-se os três últimos. Produzirei apostila para os candidatos interessados. Aguardem!
terça-feira, 14 de janeiro de 2014
ZERO, de Douglas Salomão
Como resumir um livro de poemas que não contém títulos, com distribuição tipográfica em que o branco da página também enuncia seu silêncio, com o capricho das formas lembrando os concretistas da década de 50 e, mais recentemente, sob os influxos midiáticos que intervêm na poesia performática de um Arnaldo Antunes? Inicia-se o livro com duas epígrafes: uma frase do escritor-crítico Maurice Blanchot e um poema concretista do Augusto de Campos. A epígrafe inicial anuncia a ruptura que permeará os mais de 80 poemas de Douglas Salomão: “Escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu”. Significa que os poemas não devem ser lidos pela ótica subjetiva, pois a presença do “eu-lírico” será constantemente apagada para falar mais alto a estética formal que permeia os poemas. Já o poema de Augusto de Campos configura a influência que persegue os textos poéticos do livro, na forma de um zero, que aparece como palavra e como imagem no que se convencionou chamar poema concreto, mas que realiza no aspecto grafo-icônico o conteúdo que almeja: o nada.
O ideário estético de Douglas Salomão inclui-se nessa linha de Augusto de Campos. Embora não tenha aderido totalmente à ruptura do verso tradicional, há alguns poemas que refletem essa estética.
Esses poemas visuais, portanto, longe de pertencerem a um estética dita “original”, fazem a releitura dos poemas de vanguarda do século XX, desde o cubo-futurismo, passando pelo concretismo brasileiro até chegar na poesia multimídia de Arnaldo Antunes, agora também representada na poesia de Douglas Salomão. Com já dito anteriormente, uma das propostas do livro é o distanciamento entre a palavra e o sujeito lírico (o “eu” do poema); no entanto, Douglas Salomão não segue à risca esse projeto estético, como impossibilidade de agregar-se a uma única estética neste início do século XXI. O apagamento do sujeito lírico, como já intentaram antes os poetas modernistas, não significa antilirismo. Pelo contrário, o lirismo se apresenta na voz que arruma as imagens e as contempla com certo distanciamento, sem perder, entretanto, sua identidade como persona lírica.
O ideário estético de Douglas Salomão inclui-se nessa linha de Augusto de Campos. Embora não tenha aderido totalmente à ruptura do verso tradicional, há alguns poemas que refletem essa estética.
Esses poemas visuais, portanto, longe de pertencerem a um estética dita “original”, fazem a releitura dos poemas de vanguarda do século XX, desde o cubo-futurismo, passando pelo concretismo brasileiro até chegar na poesia multimídia de Arnaldo Antunes, agora também representada na poesia de Douglas Salomão. Com já dito anteriormente, uma das propostas do livro é o distanciamento entre a palavra e o sujeito lírico (o “eu” do poema); no entanto, Douglas Salomão não segue à risca esse projeto estético, como impossibilidade de agregar-se a uma única estética neste início do século XXI. O apagamento do sujeito lírico, como já intentaram antes os poetas modernistas, não significa antilirismo. Pelo contrário, o lirismo se apresenta na voz que arruma as imagens e as contempla com certo distanciamento, sem perder, entretanto, sua identidade como persona lírica.
AI DE TI, COPACABANA, de Rubem Braga
Dentre os vários cronistas de século XX, Rubem Braga guarda um lugar de destaque na literatura brasileira. Maestro da palavra, Rubem Braga se notabilizou com algumas coletâneas e crônicas publicadas em jornais como o Correio da Manhã, Diário de Notícias, A Manhã, O Globo e Correio da Manhã, que foram reunidas em obras-primas do gênero como O conde e o passarinho (sua primeira antologia), Com a FEB na Itália, A borboleta amarela e Ai de ti, Copacabana.
Ai de ti, Copacabana foi lançado em 1960 e traz 61 crônicas escritas entre abril de 1955 a fevereiro de 1960, período em que o escritor peregrinou, como ele mesmo afirma na nota introdutória da obra, "do Correio da Manhã foi para o Diário de Notícias e deste para O Globo."
Rubem Braga é um escritor que se diferencia de seus contemporâneos pelo fato de explorar o lirismo em suas crônicas. Diferentemente de um texto qualquer, a palavra recebe um tratamento poético digno de um Carlos Drummond de Andrade ou de um Vinícius de Moraes. Mestre no descobrir o lado significativo dos acontecimentos triviais, comunica suas descobertas ao leitor numa prosa de admirável simplicidade e precisão, cujo teor poético advém de uma visão essencialmente líricas das coisas.
Rubem Braga cria uma crônica poética, na qual alia um estilo próprio e um intenso lirismo, provocados pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza.
A obra abre com a crônica "A corretora do mar", em que o poeta Rubem Braga relembra o dia em que ele rejeitou, inicialmente, uma proposta de compras de terras por ter "uma pena imensa de cortar árvores." Para sua surpresa, ou como estratégia de venda, a vendedora compartilha desta opinião: "Também tinha (pena). E então baixou a voz, sombreou os olhos de poesia e me disse que ela mesma, corretora, também comprava duas parcelas naquele terreno. E tinha certeza que também não teria coragem de mandar cortar seus pinheiros." Extasiado, não necessariamente pela oferta, mas pelos olhos azuis da vendedora, "confesso que paguei a primeira prestação: ela passou o recibo, sorriu, me disse ‘muchas gracias’ e ‘hasta lueguito’ e partiu com os olhos azuis, me deixando meio tonto, com a vaga impressão de ter comprado um pedaço do Oceano Pacífico."
Lirismo igualmente intenso veremos também na crônica "A minha glória literária", em que ele relembra uma composição de seu tempo de colégio sobre a lágrima: "Quando a alma vibra, atormentada, às pulsações de um coração amargurado pelo peso da desgraça, este, numa explosão irremediável, num desabafo sincero de infortúnios, angústias e mágoas indefiníveis, externa-se, oprimido, por uma gota de água ardente como o desejo e consoladora como a esperança; e esta pérola de amargura arrebata pela dor ao oceano tumultuoso da alma dilacerada é a própria essência do sofrimento: é a lágrima."
A genialidade também aflora ao inventar, "Entrevista com Machado de Assis", um programa em que Machado de Assis, 50 anos após sua morte, é entrevistado, respondendo apenas com frases de suas crônicas, contos e romances. Sobre o trabalho, responderia Machado: "O trabalho é honesto, mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas."; sobre as brigas de galo: "A briga de galos é o Jockey Club dos pobres"; "— O amor dura muito?". Resposta: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos". Cúmulo de humildade, o entrevistador ainda pede desculpas: "De qualquer modo, desculpa por havê-lo incomodado. Mas é que neste programa sempre entrevistamos alguém que já morreu...". Resposta: "Há tanta coisa gaiata por esse mundo que não vale ir ao outro arrancar de lá os que dormem..."
"Quando o Rio não era Rio" apresenta também um belíssimo retrato de um Rio de Janeiro, então, para o autor, somente imaginário: "As pessoas grandes que chegavam do Rio traziam malas fabulosas, cheias de presentes para todos. (...) As coisas do Rio de Janeiro eram assim, cheias de milagres e astúcias. E à noite, quando vinham visitas, os viajantes contavam as últimas anedotas do Rio de janeiro, pois naquele tempo não havia rádio. Lembro-me que, apesar de sentir esse fascínio do Rio de Janeiro, eu não pensava nunca em vir aqui. Isso simplesmente não me passava pela cabeça; o Rio de Janeiro era um lugar maravilhoso, onde vinham pessoas grandes e até eu pensava vagamente que no Rio de Janeiro só devia haver pessoas grandes."
Uma sutil ironia, sem deixar de lado o lirismo, pode ser identificada na belíssima crônica "A mulher esperando o homem", em que o autor aborda o drama feminino quando na espera por seu amado, apesar de ser um tema recorrente, "sei que é velho, já serviu para sonetos, contos, páginas de romances, talvez quadros de pintura, talvez músicas", Rubem Braga apresenta possibilidades de se diminuir o sofrimento pela espera do amado: "devia haver funcionários especiais, capazes de abastecer de quinze em quinze minutos, jurar que todas as providências já foram tomadas, 'estamos seguros de que dentro de poucos minutos teremos alguma coisa a dizer à senhora"'. Um fato importante é o de que para o autor, independente da mulher, o sofrimento é significativo: "não importa que seja a esposa vulgar de um homem vulgar; e que no fim a história do atraso dele seja também vulgar, neste momento ela é a mulher esperando o homem"; e que se o homem soubesse o que se passa na cabeça de uma mulher enquanto ela o espera, "é possível que ele ficasse pálido, muito pálido."
A crônica-título da obra é igualmente passível de ser comentada, visto a sua temática: a destruição da pecaminosa Copacabana. Rubem Braga, em "Ai de ti, Copacabana", apresenta uma intimidação irônica ao tradicional bairro boêmio do Rio de Janeiro na forma de 22 itens que exploram o cotidiano e os vícios da praia: "2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras (...) 3. (...) estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia. (...) 5. Grandes são os teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafinado o mar; mas eles se abaterão. (...) 8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum. (...) 10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente à hora da aprovação." Mesmo as mulheres e os homens sofrerão as agruras: "11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleo odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência." E tais pecados não serão automaticamente perdoados: "16. (...) a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão. (...) 19. Pois grande foi a tua vaidade , Copacabana, e fundas as tuas mazelas." Por fim, a derradeira ameaça: "22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa. (...) Canta a tua última canção, Copacabana!”
Ai de ti, Copacabana foi lançado em 1960 e traz 61 crônicas escritas entre abril de 1955 a fevereiro de 1960, período em que o escritor peregrinou, como ele mesmo afirma na nota introdutória da obra, "do Correio da Manhã foi para o Diário de Notícias e deste para O Globo."
Rubem Braga é um escritor que se diferencia de seus contemporâneos pelo fato de explorar o lirismo em suas crônicas. Diferentemente de um texto qualquer, a palavra recebe um tratamento poético digno de um Carlos Drummond de Andrade ou de um Vinícius de Moraes. Mestre no descobrir o lado significativo dos acontecimentos triviais, comunica suas descobertas ao leitor numa prosa de admirável simplicidade e precisão, cujo teor poético advém de uma visão essencialmente líricas das coisas.
Rubem Braga cria uma crônica poética, na qual alia um estilo próprio e um intenso lirismo, provocados pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza.
A obra abre com a crônica "A corretora do mar", em que o poeta Rubem Braga relembra o dia em que ele rejeitou, inicialmente, uma proposta de compras de terras por ter "uma pena imensa de cortar árvores." Para sua surpresa, ou como estratégia de venda, a vendedora compartilha desta opinião: "Também tinha (pena). E então baixou a voz, sombreou os olhos de poesia e me disse que ela mesma, corretora, também comprava duas parcelas naquele terreno. E tinha certeza que também não teria coragem de mandar cortar seus pinheiros." Extasiado, não necessariamente pela oferta, mas pelos olhos azuis da vendedora, "confesso que paguei a primeira prestação: ela passou o recibo, sorriu, me disse ‘muchas gracias’ e ‘hasta lueguito’ e partiu com os olhos azuis, me deixando meio tonto, com a vaga impressão de ter comprado um pedaço do Oceano Pacífico."
Lirismo igualmente intenso veremos também na crônica "A minha glória literária", em que ele relembra uma composição de seu tempo de colégio sobre a lágrima: "Quando a alma vibra, atormentada, às pulsações de um coração amargurado pelo peso da desgraça, este, numa explosão irremediável, num desabafo sincero de infortúnios, angústias e mágoas indefiníveis, externa-se, oprimido, por uma gota de água ardente como o desejo e consoladora como a esperança; e esta pérola de amargura arrebata pela dor ao oceano tumultuoso da alma dilacerada é a própria essência do sofrimento: é a lágrima."
A genialidade também aflora ao inventar, "Entrevista com Machado de Assis", um programa em que Machado de Assis, 50 anos após sua morte, é entrevistado, respondendo apenas com frases de suas crônicas, contos e romances. Sobre o trabalho, responderia Machado: "O trabalho é honesto, mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas."; sobre as brigas de galo: "A briga de galos é o Jockey Club dos pobres"; "— O amor dura muito?". Resposta: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos". Cúmulo de humildade, o entrevistador ainda pede desculpas: "De qualquer modo, desculpa por havê-lo incomodado. Mas é que neste programa sempre entrevistamos alguém que já morreu...". Resposta: "Há tanta coisa gaiata por esse mundo que não vale ir ao outro arrancar de lá os que dormem..."
"Quando o Rio não era Rio" apresenta também um belíssimo retrato de um Rio de Janeiro, então, para o autor, somente imaginário: "As pessoas grandes que chegavam do Rio traziam malas fabulosas, cheias de presentes para todos. (...) As coisas do Rio de Janeiro eram assim, cheias de milagres e astúcias. E à noite, quando vinham visitas, os viajantes contavam as últimas anedotas do Rio de janeiro, pois naquele tempo não havia rádio. Lembro-me que, apesar de sentir esse fascínio do Rio de Janeiro, eu não pensava nunca em vir aqui. Isso simplesmente não me passava pela cabeça; o Rio de Janeiro era um lugar maravilhoso, onde vinham pessoas grandes e até eu pensava vagamente que no Rio de Janeiro só devia haver pessoas grandes."
Uma sutil ironia, sem deixar de lado o lirismo, pode ser identificada na belíssima crônica "A mulher esperando o homem", em que o autor aborda o drama feminino quando na espera por seu amado, apesar de ser um tema recorrente, "sei que é velho, já serviu para sonetos, contos, páginas de romances, talvez quadros de pintura, talvez músicas", Rubem Braga apresenta possibilidades de se diminuir o sofrimento pela espera do amado: "devia haver funcionários especiais, capazes de abastecer de quinze em quinze minutos, jurar que todas as providências já foram tomadas, 'estamos seguros de que dentro de poucos minutos teremos alguma coisa a dizer à senhora"'. Um fato importante é o de que para o autor, independente da mulher, o sofrimento é significativo: "não importa que seja a esposa vulgar de um homem vulgar; e que no fim a história do atraso dele seja também vulgar, neste momento ela é a mulher esperando o homem"; e que se o homem soubesse o que se passa na cabeça de uma mulher enquanto ela o espera, "é possível que ele ficasse pálido, muito pálido."
A crônica-título da obra é igualmente passível de ser comentada, visto a sua temática: a destruição da pecaminosa Copacabana. Rubem Braga, em "Ai de ti, Copacabana", apresenta uma intimidação irônica ao tradicional bairro boêmio do Rio de Janeiro na forma de 22 itens que exploram o cotidiano e os vícios da praia: "2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras (...) 3. (...) estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia. (...) 5. Grandes são os teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafinado o mar; mas eles se abaterão. (...) 8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum. (...) 10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente à hora da aprovação." Mesmo as mulheres e os homens sofrerão as agruras: "11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleo odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência." E tais pecados não serão automaticamente perdoados: "16. (...) a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão. (...) 19. Pois grande foi a tua vaidade , Copacabana, e fundas as tuas mazelas." Por fim, a derradeira ameaça: "22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa. (...) Canta a tua última canção, Copacabana!”
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