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"Ao fundo sou eu, mas será verdade / que sou? O fundo é que me inventa? / Terei mesmo essa identidade / feita de tinta apenas?" Palavras que respiram por Miguel Marvilla

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

TERRA SONÂMBULA, de Mia Couto

O título faz referência a dois importantes componentes dessa narrativa: a terra e o sonho. Mia Couto inicia o livro descrevendo a paisagem moçambicana:

“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Em cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão. Em resignada aprendizagem da morte”.

Ao abordar a “aprendizagem da morte”, o escritor apresenta a situação de Moçambique, que no ano de 1975, após uma década de guerra, conquista sua independência do colonialismo português. No entanto, esse acordo entre a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e Portugal, assinado em 1975, não libertou os moçambicanos da guerra. O cenário moçambicano era o mesmo, a guerra civil havia se estabelecido em Moçambique e só teria fim em 1992, com o Acordo Geral da Paz assinado pelo presidente de Moçambique e pelo presidente da RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique). Muidinga (o miúdo) e Tuahir são personagens cercados por este cenário, pela estrada morta, pelas cores sujas, enquanto ambos caminham juntos sem destino, “em busca do adiante”. São estereótipos dos milhares de moçambicanos, vagando em campos de refugiados.

Nessa dura caminhada, Muidinga e Tuahir param ao encontrar um machimbombo (ônibus) queimado, e ali decidem descansar. O miúdo encontra dentro de uma mala cadernos manuscritos e passa a lê-los. Assim o menino e o velho passam a compartilhar o diário de Kindzu e vão encontrando personagens e histórias guiadas por sonhos, num Moçambique não muito distante. Em seu diário, Kindzu relata a busca por sua identidade, seu desejo de ser um guerreiro naparama e as dificuldades que a vida lhe impôs. Conta sobre a família: o pai, velho Taímo, era pescador e, segundo Kindzu, “sofria de sonhos”; a mãe que lhe ensinava a ser sombra; entre os irmãos, Kindzu fala de Junhito que havia ganhado o nome “Vinticinco de Junho” devido ao dia da independência de Moçambique. Após a morte do pai, Kindzu parte da casa onde morava com a mãe, por sentir-se perdido e insatisfeito. O garoto parte para uma viagem, sem destino final, sendo diversas vezes perseguido e atormentado pelo espírito e pelas lembranças do pai morto.

Tuahir, Muidinga e Kindzu são frutos de seu país, seguem sem rumo certo, desorientados, situação um tanto semelhante com Moçambique, durante a guerra civil. Terra sonâmbula nos permite imaginar a situação em que se encontra o país, pois os relatos do velho Tuahir, de Muidinga e de Kindzu mostram a vida num local tomado pelos horrores da guerra, onde sonhar se torna um meio de fuga da cruel realidade. O livro denuncia a pobreza , o abandono do povo, uma terra sem lei, os efeitos da guerra.

Os sonhos de Kindzu guiam sua viagem e seus relatos. Seu pai aparece nos sonhos, atormentando-o, mas algumas vezes o orienta. Em uma de suas conversas com o pai, questionado sobre o que escrevia nos cadernos, Kindzu comenta que escreve conforme vai sonhando. Taímo responde que é bom ensinar alguém a sonhar. Os sonhos e as fantasias aparecem de forma importante no livro, dão esperança, como no caso da viúva Virgínia Pinto que utiliza a fantasia para poder seguir sua vida tranquilamente e desviar os olhares dos interesseiros. A própria terra onde os personagens Tuahir e Muidinga se encontram se torna sonâmbula, pois a cada amanhecer os personagens deparam com mudanças no local, como se ela se movimentasse enquanto eles dormem. As viagens dos personagens promovem mudanças nos próprios viajantes, pois muitas vezes passam por locais já conhecidos, mas observados de outra forma.

Quando caem numa armadilha e encontram Siqueleto, um velho que vivia sozinho sonhando com a reconstrução de sua aldeia, destruída pela guerra, é o velho que se encanta com seu nome escrito por Muidinga. Não há confronto de culturas, Mia Couto demonstra o valor de cada uma: o analfabeto, o letrado, o conhecedor, o sábio, cada um marcando sua importância para Moçambique.

Em sua viagem, Kindzu se vê mediante a morte do amigo Surendra, o amor de Farida e, mais tarde, a perda da amada; encontra a ganância em Assane, a fome e o sofrimento no campo de refugiados onde encontra tia Euzinha. As mudanças presenciadas por Kindzu o afetam profundamente, como também Muidinga, ao ler seus cadernos. Tuahir e Muidinga fingem em um determinado momento ser Kindzu e Taímo, saem da realidade vivendo a fantasia, chamam-se de pai e filho. É durante sua caminhada com o velho Tuahir que Muidinga descobre que o tio havia lhe tirado da cova, que seria enterrado vivo até que Tuahir percebe o engano. Muidinga descobre também que havia ingerido um tipo de mandioca venenosa e foi tido como morto. Além da descoberta de seu passado, o miúdo se depara com novas descobertas, como a perda da virgindade com as “velhas profanadoras”. Aos poucos, instala-se uma relação parental, pois Tuhair de tio passa a ser pai. Afinal, Muidinga simboliza qualquer criança órfã, não apenas local, mas de todas as guerras, em todas as épocas.

Em Terra sonâmbula, os personagens se encontram em situação precária, uma vez que o sofrimento e a dificuldade caminham juntos nas viagens de Kindzu, Tuahir e Muidinga. A história nos faz mergulhar e nos aproxima da realidade vivida pelos moradores de Moçambique, nos tempos de guerra. Mia Couto descreve cuidadosamente cada sofrimento, cada dificuldade e cada momento vivido por seus personagens de forma encantadora e poética. Logo, o leitor se vê obrigado a mergulhar junto nessa terra de sonhos e assim acaba também fantasiando e sonhando junto com seus personagens. Quando finalmente Kindzu tomba sob uma arma de fogo não se sabe de onde, conforme relata em seu último caderno intitulado “As páginas da terra”, ocorre o cruzamento entre as duas narrativas, pois no momento da enunciação, Kindzu encerra seu caderno vislumbrando um garoto que tem em suas mãos as folhas diárias de Kindzu, que o chama Gaspar. Finalmente Kindzu encontra quem procurava e Muidinga descobre sua origem.

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