O título faz referência a dois importantes componentes dessa narrativa: a terra e o sonho. Mia Couto inicia o livro descrevendo a paisagem moçambicana:
“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Em cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão. Em resignada aprendizagem da morte”.
Ao abordar a “aprendizagem da morte”, o escritor apresenta a situação de Moçambique, que no ano de 1975, após uma década de guerra, conquista sua independência do colonialismo português. No entanto, esse acordo entre a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e Portugal, assinado em 1975, não libertou os moçambicanos da guerra. O cenário moçambicano era o mesmo, a guerra civil havia se estabelecido em Moçambique e só teria fim em 1992, com o Acordo Geral da Paz assinado pelo presidente de Moçambique e pelo presidente da RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique). Muidinga (o miúdo) e Tuahir são personagens cercados por este cenário, pela estrada morta, pelas cores sujas, enquanto ambos caminham juntos sem destino, “em busca do adiante”. São estereótipos dos milhares de moçambicanos, vagando em campos de refugiados.
Nessa dura caminhada, Muidinga e Tuahir param ao encontrar um machimbombo (ônibus) queimado, e ali decidem descansar. O miúdo encontra dentro de uma mala cadernos manuscritos e passa a lê-los. Assim o menino e o velho passam a compartilhar o diário de Kindzu e vão encontrando personagens e histórias guiadas por sonhos, num Moçambique não muito distante. Em seu diário, Kindzu relata a busca por sua identidade, seu desejo de ser um guerreiro naparama e as dificuldades que a vida lhe impôs. Conta sobre a família: o pai, velho Taímo, era pescador e, segundo Kindzu, “sofria de sonhos”; a mãe que lhe ensinava a ser sombra; entre os irmãos, Kindzu fala de Junhito que havia ganhado o nome “Vinticinco de Junho” devido ao dia da independência de Moçambique. Após a morte do pai, Kindzu parte da casa onde morava com a mãe, por sentir-se perdido e insatisfeito. O garoto parte para uma viagem, sem destino final, sendo diversas vezes perseguido e atormentado pelo espírito e pelas lembranças do pai morto.
Tuahir, Muidinga e Kindzu são frutos de seu país, seguem sem rumo certo, desorientados, situação um tanto semelhante com Moçambique, durante a guerra civil. Terra sonâmbula nos permite imaginar a situação em que se encontra o país, pois os relatos do velho Tuahir, de Muidinga e de Kindzu mostram a vida num local tomado pelos horrores da guerra, onde sonhar se torna um meio de fuga da cruel realidade. O livro denuncia a pobreza , o abandono do povo, uma terra sem lei, os efeitos da guerra.
Os sonhos de Kindzu guiam sua viagem e seus relatos. Seu pai aparece nos sonhos, atormentando-o, mas algumas vezes o orienta. Em uma de suas conversas com o pai, questionado sobre o que escrevia nos cadernos, Kindzu comenta que escreve conforme vai sonhando. Taímo responde que é bom ensinar alguém a sonhar. Os sonhos e as fantasias aparecem de forma importante no livro, dão esperança, como no caso da viúva Virgínia Pinto que utiliza a fantasia para poder seguir sua vida tranquilamente e desviar os olhares dos interesseiros. A própria terra onde os personagens Tuahir e Muidinga se encontram se torna sonâmbula, pois a cada amanhecer os personagens deparam com mudanças no local, como se ela se movimentasse enquanto eles dormem. As viagens dos personagens promovem mudanças nos próprios viajantes, pois muitas vezes passam por locais já conhecidos, mas observados de outra forma.
Quando caem numa armadilha e encontram Siqueleto, um velho que vivia sozinho sonhando com a reconstrução de sua aldeia, destruída pela guerra, é o velho que se encanta com seu nome escrito por Muidinga. Não há confronto de culturas, Mia Couto demonstra o valor de cada uma: o analfabeto, o letrado, o conhecedor, o sábio, cada um marcando sua importância para Moçambique.
Em sua viagem, Kindzu se vê mediante a morte do amigo Surendra, o amor de Farida e, mais tarde, a perda da amada; encontra a ganância em Assane, a fome e o sofrimento no campo de refugiados onde encontra tia Euzinha. As mudanças presenciadas por Kindzu o afetam profundamente, como também Muidinga, ao ler seus cadernos. Tuahir e Muidinga fingem em um determinado momento ser Kindzu e Taímo, saem da realidade vivendo a fantasia, chamam-se de pai e filho. É durante sua caminhada com o velho Tuahir que Muidinga descobre que o tio havia lhe tirado da cova, que seria enterrado vivo até que Tuahir percebe o engano. Muidinga descobre também que havia ingerido um tipo de mandioca venenosa e foi tido como morto. Além da descoberta de seu passado, o miúdo se depara com novas descobertas, como a perda da virgindade com as “velhas profanadoras”. Aos poucos, instala-se uma relação parental, pois Tuhair de tio passa a ser pai. Afinal, Muidinga simboliza qualquer criança órfã, não apenas local, mas de todas as guerras, em todas as épocas.
Em Terra sonâmbula, os personagens se encontram em situação precária, uma vez que o sofrimento e a dificuldade caminham juntos nas viagens de Kindzu, Tuahir e Muidinga. A história nos faz mergulhar e nos aproxima da realidade vivida pelos moradores de Moçambique, nos tempos de guerra. Mia Couto descreve cuidadosamente cada sofrimento, cada dificuldade e cada momento vivido por seus personagens de forma encantadora e poética. Logo, o leitor se vê obrigado a mergulhar junto nessa terra de sonhos e assim acaba também fantasiando e sonhando junto com seus personagens. Quando finalmente Kindzu tomba sob uma arma de fogo não se sabe de onde, conforme relata em seu último caderno intitulado “As páginas da terra”, ocorre o cruzamento entre as duas narrativas, pois no momento da enunciação, Kindzu encerra seu caderno vislumbrando um garoto que tem em suas mãos as folhas diárias de Kindzu, que o chama Gaspar. Finalmente Kindzu encontra quem procurava e Muidinga descobre sua origem.
Quem sou eu

- Professora Virgínia
- "Ao fundo sou eu, mas será verdade / que sou? O fundo é que me inventa? / Terei mesmo essa identidade / feita de tinta apenas?" Palavras que respiram por Miguel Marvilla
terça-feira, 14 de janeiro de 2014
DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA, de Plínio Marcos
Escrita e estreada em 1966, em São Paulo, no Bar Ponto de Encontro, a obra foi inspirada no texto O terror de Roma, do escritor italiano Alberto Moravia. A história gira em torno de dois personagens, Paco e Tonho, sujeitos completamente distintos, que têm as vidas cruzadas ao acaso pelo destino.
Tonho é um pobretão metido a coitado, que sai de sua terra natal e vai a São Paulo em busca de um trabalho que lhe possa dar um mínimo de dignidade. Na metrópole, acaba se encontrando com Paco, um mau caráter metido a malandro, com quem divide o aluguel de um quartinho. Tonho sonha com um par de sapatos novos, para que possa ficar apresentável e conseguir um emprego mais digno, enquanto Paco planeja ficar rico às custas dos outros. Muito acontece nessa história dramática, até que após um assalto realizado pelos dois parceiros, Paco inferniza Tonho a tal ponto que descontrola o seu amigo e o único resultado é a trágica morte do próprio Paco, assassinado por Tonho.
A relação entre os personagens é de uma instabilidade constante, onde ódio, inimizade, intriga e, ao mesmo tempo, companheirismo conectam os dois. Em grande parte da peça teatral, ambos ficam dentro de um quarto, um ambiente prisional que mostra em detalhes a transgressão do ser humano, consumidos pela marginalização que a própria sociedade constrói. A solidão e o aparente cárcere levam os personagens à condição abjeta do ser. O ambiente criminal está instalado em toda obra. Tonho tem estudo, pensa diferente de Paco, visa a um emprego decente, mas acaba sendo consumido pela violência do companheiro.
A exploração do melhor pelo pior, do mais forte pelo mais fraco, eis o tema que a peça desenvolve até a “explosão” final. Após assaltarem um casal, o enredo começa a mudar o curso: os dois discutem sobre a partilha do assalto, Tonho revive a todo instante em sua memória o deboche de Paco sobre a história do tão sonhado par de sapatos novos e as brincadeiras sobre seu envolvimento com o “Negrão” do caminhão, apelidando-o de “Boneca do Negrão”. Ao fim da partilha lhe sobram somente os sapatos. Tonho fica extremamente irritado com toda a situação, além de os sapatos não servirem, e tem uma reação contrária a qualquer expectativa esperada. Tonho muda repentinamente a ação, tornando-se o criminoso. “Explode” em uma loucura momentânea, pega o revólver de Paco, põe uma bala e o ameaça matar; antes, porém, faz o sarcástico Paco usar brinco, dançar e rebolar sobre a mira do revólver, finalizando com um tiro e matando-o. Tonho sai de cena se anunciando como “Tonho Maluco! O Perigoso, Mau Pacas!”
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
SÍNTESE DOS GÊNEROS TEXTUAIS RECORRENTES NAS PROVAS DE REDAÇÃO EM VESTIBULARES[1]
GÊNERO
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CARACTERÍSTICAS
|
ESTRUTURA
|
1. Carta
aberta
|
Formato
de carta, para publicação em veículo de comunicação; contém ponto de vista
sobre assunto de interesse social; existência de remetente (coletivo/individual) e destinatário (coletivo/individual); título com destinatário ou
assunto: Carta aberta à população
brasileira ou Carta aberta sobre a
situação dos controladores de vôo; texto
datado.
|
Introdução com apresentação do remetente e do motivo da carta
aberta.
Desenvolvimento com considerações e argumentos.
Conclusão com reafirmação do propósito da carta.
Local e data com assinatura (iniciais, se remetente individual)
|
2. Carta
argumentativa
|
Texto de correspondência, com formato decalcado: local e data, vocativo, corpo da carta,
saudação final, assinatura.
|
Introdução com apresentação do remetente, do tema e da tese
assumida sobre o tema. Atenção: a
proposta pode pedir máscara do remetente.
Desenvolvimento com argumentos.
Conclusão com reafirmação da tese assumida.
A assinatura depende das instruções. A
UNICAMP instrui que sejam as iniciais. Caso não haja qualquer orientação, usar as iniciais do próprio nome.
|
3. Cartão
postal
|
Trata-se de uma simplificação da
carta simples. Tem a forma de um pequeno retângulo de papelão fino, com a
intenção de circular pelo Correio sem envelope; uma das faces destina-se ao
endereço do destinatário, postagem do selo, mensagem do remetente; a outra
contém alguma imagem, geralmente um fotografia local ou reproduçao de uma
peça artística ou publicitária.
|
Como se trata de carta, contém: local e
data, vocativo, corpo da carta, saudação final, assinatura. Aproxima-se mais de um bilhete, pois mesmo sendo
missiva informal com assunto particular, circula sem envelope. A linguagem é
informal e o número de linhas é limitado. Estrutura-se em:
Introdução com objetivo do cartão.
Desenvolvimento com informações, considerações ou detalhamento do
objetivo do cartão.
Conclusão com reafirmação do objetivo do cartão.
|
4.
Manifesto
|
Texto
de apoio ou repúdio a uma questão de ordem social; programa ideológico e/ou
literário (Manifesto Comunista, Manifesto Futurista...); geralmente sem destinatário; signatário individual ou coletivo; texto datado.
|
Introdução com apresentação do assunto.
Desenvolvimento com considerações e argumentos.
Conclusão com reafirmação do propósito do manifesto.
Local e data com assinatura (iniciais, se remetente individual)
|
5. Conto
|
Narração
ficcional, com narrador, personagem, ação, espaço, tempo. Foco narrativo em
1ª ou 3ª pessoa (narrador personagem ou narrador observador)
|
Introdução com
apresentação de personagem, cenário, tempo
Desenvolvimento com ações (conflito entre personagens)
Desfecho (solução
do conflito)
|
6. Fábula
|
Narração
curta, que contém uma instrução moral, em forma sintética, cujos personagens
são animais que representam qualidades humanas.
|
Introdução com
apresentação de personagens, cenário, tempo
Desenvolvimento com ações (conflito entre personagens)
Desfecho (solução
do conflito)
|
7. Relato
de viagem
|
Relato
de experiências vividas durante uma viagem; foco de interesse mais no lugar
visitado e menos nas emoções do sujeito; texto
datado.
|
Introdução com características mais atrativas.
Desenvolvimento com a exploração de aspectos mais relevantes: belezas
naturais, pontos turísticos, culinária, folclore, arquitetura, transporte
etc.
Conclusão com a impressão geral sobre o lugar visitado.
|
8. Relato
autobiográfico
|
Relato
de experiências durante a vida, desde o nascimento até o momento da escrita;
memórias, redigidas em primeira pessoa, em que o narrador destaca os fatos
mais importantes de sua vida para um leitor.
|
Introdução com auto-apresentação — por exemplo, data e local de
nascimento, nome dos pais(com máscara,
no caso do vestibular, para não haver identificação na prova de redação),
características físicas e psicológicas.
Desenvolvimento com ações marcantes vividas na infância, adolescência
e idade atual.
Conclusão com expectativas, projetando o futuro conforme
instruções da prova de redação.
|
9. Biografia
|
Relato
de experiências durante a vida de uma pessoa, desde o nascimento até o
momento da escrita, redigido em 3ª pessoa, em que o biógrafo destaca os fatos
mais significativos da vida de uma pessoa (real) ou de um personagem
(fictício) para um leitor. Existem biografias autorizadas (em que o
biografado colabora com os próprios dados) e biografias não autorizadas
(geralmente contendo fatos escandalosos).
|
Introdução com apresentação da pessoa ou do personagem — por
exemplo, data e local de nascimento, nome dos pais, características físicas e
psicológicas.
Desenvolvimento com ações marcantes vividas na infância, adolescência
e idade adulta.
Conclusão com fatos relevantes que marcaram a vida do
biografado, como seu papel social, por exemplo.
|
10. Diário
íntimo
|
Registro
de experiências vividas no dia; foco nas impressões, emoções e sentimentos do
sujeito diante de fatos, acontecimentos e reflexões cotidianos; texto datado.
|
Data (dia, mês e ano)
Estrutura-padrão:
introdução, desenvolvimento e conclusão.
|
11.
Testemunho
|
O
testemunho é um gênero que se encontra entre a autobiografia e a biografia.
Depoimento em 1ª pessoa.
|
Estrutura-se
como um tipo narrativo.
|
12. Notícia
|
Texto
informativo; veiculação de um fato real que desperte interesse no leitor, expressa
de maneira rápida e direta.
|
Introdução com apanhado geral dos fatos.
Demais parágrafos com particularização dos aspectos mais importantes.
Notícias de maior extensão apresentam depoimentos de testemunhas do fato ou
autoridades sobre o assunto.
|
13. Crônica
|
Registro
de fato do cotidiano, a partir de experiência vivida, em que o cronista faz
suas reflexões. Foco narrativo em 1ª pessoa; geralmente texto datado.
|
Introdução com
apresentação do fato que será analisado.
Desenvolvimento com relato e reflexões do cronista.
Conclusão com reafirmação do ponto de vista adotado.
|
14. Diálogo
argumentativo
|
De
caráter persuasivo, visa apresentar argumentos a fim de provocar, entre os
interlocutores, mudança de ideia, atitude ou comportamento; não há narrador.
|
Estrutura
dialógica, graficamente disposta em parágrafos e travessões. Os argumentos
seriam os que os interlocutores trocariam em função de uma tese e defesa
dessa tese.
|
15. Resenha
resumo ou resenha descritiva
|
É
um texto que se limita a resumir o conteúdo de um livro, de um capítulo, de
um filme, de uma peça de teatro ou de um espetáculo, sem qualquer crítica ou
julgamento de valor. Trata-se de um texto informativo, pois o objetivo
principal é informar o leitor.
|
Devem
constar:
O
título (no vestibular, somente se for solicitado nas instruções)
A
referência bibliográfica da obra
Alguns
dados bibliográficos do autor da obra resenhada
O
resumo ou a síntese do conteúdo.
|
16. Resenha
crítica*
|
Além
de resumir o objeto, faz uma avaliação sobre ele, uma crítica, apontando os
aspectos positivos e negativos. Trata-se, portanto, de um texto de informação
e de opinião, também denominado de recensão crítica.
|
Devem
constar:
O
título (no vestibular, somente se for solicitado nas instruções)
A
referência bibliográfica da obra
Alguns
dados bibliográficos do autor da obra resenhada
O
resumo ou a síntese do conteúdo
A
avaliação crítica
Se
for o caso, fazer comparação com outro autor (questão de vestibular).
|
17. Texto
ou artigo de opinião*
|
Texto
jornalístico argumentativo; tese sobre o tema dado, que será defendida com
argumentos.
|
Introdução com tese sobre o tema.
Desenvolvimento com argumentos. Conclusão
com reafirmação da tese.
|
18.
Editorial*
|
Texto
jornalístico argumentativo: reflete a ideologia do veículo de comunicação;
geralmente não é assinado; tese sobre o tema dado, que será defendida por
meio de argumentos.
|
Introdução com
tese sobre o tema.
Desenvolvimento com argumentos.
Conclusão com
reafirmação da tese.
|
19.
Comentário crítico*
|
É
um texto que apresenta descrição do objeto — charge, anúncio publicitário,
quadrinhos — ou assunto a ser comentado. Apresenta também um aspecto
avaliativo, com juízo de valor sobre o objeto ou assunto, tendo, portanto,
teor dissertativo.
|
Introdução com descrição do objeto ou apresentação do assunto e
da opinião.
Desenvolvimento com argumentos e considerações.
|
20. Ensaio*
|
Texto
científico-acadêmico, de defesa de um ponto de vista, associado a um assunto
mais amplo em investigação; geralmente destina-se a trabalhos de fim de
semestre nos cursos de graduação e pós-graduação nas universidades
brasileiras; pode ser referência a seção jornalística que apresenta ponto de
vista; trata-se, portanto, da nossa conhecida dissertação; linguagem
dissertativa exige objetividade, porém deve ficar evidente o ponto de vista
assumido pelo ensaísta.
|
Introdução com tese, usando recurso técnico de parágrafo
introdutório (alusão histórica, definição, divisão, citação – ótimo iniciar
citando com artigo de lei, por exemplo).
Desenvolvimento com argumentos que podem ser organizados por:
analogia, confronto (ótimo fazer contra-argumentação), causas e
conseqüências, exemplificação, citação (inclusive argumento de uma autoridade
no tema), enumeração de dados estatísticos (argumento difícil de refutar),
tudo isso articulado a uma tese (é importante explicitá-la na introdução).
Enunciados de questões às vezes propõem o uso de certo recurso argumentativo.
Conclusão com a reafirmação da tese, em que se faz uma síntese
da argumentação, dessa vez mostrando a articulação dos fundamentos para
comprovar seu ponto de vista; pode ser proposta de solução (na prova do ENEM
geralmente se pede).
|
21.
Discurso*
|
Trata-se
de gênero discursivo produzido para ser proferido oralmente a um auditório em
um evento solene. Expressa formalmente a maneira de pensar e de agir
do(s)locutor(es) e sua visão acerca dos interlocutores presentes na
solenidade. Por se tratar de um texto construído com o objetivo de defender
um ponto de vista sobre determinado assunto, buscando o convencimento do
auditório e, logo, sua adesão às ideias defendidas, é um gênero com
características predominantemente expositivo-argumentativas.
|
Devido
a essa forma de interação, o ponto de vista defendido deve ser fundamentado
com explicações, razões, ilustrações, citações etc.
|
22. Verbete
|
É
um gênero textual comum a enciclopédias e dicionários, seja na forma
tradicional, seja na forma eletrônica. Em prova de redação, o título do texto
é o termo a ser definido, explicado e exemplificado; localiza-se à esquerda
do texto. O texto se inicia a linha abaixo, constituído por parágrafos.
Basicamente é um texto descritivo-informativo, escrito em 3ª. pessoa,
portanto sem qualquer referência subjetiva.
|
Constitui-se
de:
Título: termo a ser definido
1º parágrafo: definição do termo; pode ser feita de forma sucinta
a descrição gramatical: substantivo, adjetivo, verbo etc., bem como suas
flexões.
2º parágrafo: exemplos de situação em que o termo aparece.
Dependendo
da proposta de redação, pode-se também apresentar uma vantagem e uma
desvantagem do uso do conceito atribuído ao termo.
|
23.
Relatório
|
Trata-se
de um texto informativo-descritivo, em que os redatores apresentam
informações sobre atividades desenvolvidas em escolas, em ambientes de
trabalho, em visitas técnicas, em projetos acadêmicos etc. Deve ser redigido
de forma objetiva, sem uso da 1ª. pessoa do singular ou do plural. Geralmente
o relatório é dirigido a chefes, supervisores, professores etc.
|
Basicamente,
um relatório apresenta a seguinte estrutura:
Apresentação do projeto (público-alvo, objetivos e justificativa). Isso pode
ser feito em um parágrafo.
Relato das atividades desenvolvidas e
comentário(s) sobre os impactos das atividades na comunidade. Trata-se do desenvolvimento do relatório. Portanto,
haveria um ou mais parágrafos para apresentar as atividades desenvolvidas e
um parágrafo conclusivo, apresentando os benefícios sociais dessas
atividades.
|
* Os textos são de caráter dissertativo,
portanto possuem a mesma estrutura-padrão, consideradas as diferenças
estruturais do gênero.
[1] Quadro organizado por professora Virgínia Cœli Passos
de Albuquerque, com base nas provas de redação de vestibulares dos últimos dez
anos.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
"Penso, Logo Sou Ateu": falso ou verdadeiro? Ou, no melhor do inglês: fake or true?
Deparei agora, no feed de notícias do Facebook, com um perfil intitulado "Penso, Logo Sou Ateu" que veicula uma foto de mulher em desespero com a seguinte legenda: "Fui debater com um ateu / Ele usou fatos, dados científicos, história, arqueologia, lógica, razão e até a própria bíblia contra mim... Isso não é justo!!!" Para não ser deselegante e iniciar uma discussão infundada (ou fundada em certezas, como quiserem) com quem postou, respondo aqui, no meu espaço, à intolerância de certo ateísmo. Antes de iniciar minha contestação à publicação, coloco-me como "livre pensadora", pois religação (ou religião) com o sagrado é um princípio independente de dogmas, sectarismos, denominações, nomeações etc.
Vamos ao título: trata-se de uma falácia, em que a premissa maior seria "quem pensa é ateu". Premissa menor: "Ora, eu penso"; "logo, sou ateu". O pensamento é válido, mas falso. Por isso, é um sofisma bem ao gosto dos socráticos. E a "certeza" da premissa maior se desgasta por ser excludente. Aí reside a falsidade... Quanto à imagem da mulher, se adotarmos uma análise semiótica, conseguiremos chegar ao nível profundo do discurso carregado de uma ideologia que se pretende dominante e dona da verdade: a mulher desesperada por não pensar. Por que mulher? Por ser submissa e manipulável, superficial e desbotada, um ser anencéfalo e desprovido de argumentos. Por isso a frase final: "Isso não é justo!!!". Essa montagem tendenciosa e de cunho ideológico-patriarcal se rende ela mesma à bobagem que enuncia. E acrescento, sem querer ser dona da verdade: o ateu que escreveu isso não pensa. E devolvendo assim o sofisma: Não penso; logo, sou ateu. Valha-me, Jorge!
Vamos ao título: trata-se de uma falácia, em que a premissa maior seria "quem pensa é ateu". Premissa menor: "Ora, eu penso"; "logo, sou ateu". O pensamento é válido, mas falso. Por isso, é um sofisma bem ao gosto dos socráticos. E a "certeza" da premissa maior se desgasta por ser excludente. Aí reside a falsidade... Quanto à imagem da mulher, se adotarmos uma análise semiótica, conseguiremos chegar ao nível profundo do discurso carregado de uma ideologia que se pretende dominante e dona da verdade: a mulher desesperada por não pensar. Por que mulher? Por ser submissa e manipulável, superficial e desbotada, um ser anencéfalo e desprovido de argumentos. Por isso a frase final: "Isso não é justo!!!". Essa montagem tendenciosa e de cunho ideológico-patriarcal se rende ela mesma à bobagem que enuncia. E acrescento, sem querer ser dona da verdade: o ateu que escreveu isso não pensa. E devolvendo assim o sofisma: Não penso; logo, sou ateu. Valha-me, Jorge!
domingo, 24 de novembro de 2013
Finalmente, a apostila de resumos e análises das obras literárias UFES 2014...
Gente, custou... Mas saiu... Muitas vezes temos que adiar nosso planejamento, por conta de outras urgências, como ficar com a neta - ver um filho crescer é lindo, ver uma neta crescer é sublime! - ou recomeçar com aulas de literatura na Universidade. No entanto, já estou fazendo as cópias para os primeiros interessados. Ainda é tempo de estudar, ainda é tempo de revisar... Um grande abraço!
domingo, 27 de outubro de 2013
Sobre o tema da prova de redação ENEM/2013
Antes mesmo de ler na íntegra a prova de redação do ENEM/2013, já podemos adiantar algumas ideias para quem saiu do teste mais cedo.
O tema "Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil" necessariamente deverá articular-se ao problema da ingestão de bebidas alcoólicas, apresentado como uma das causas do elevado número de vítimas no trânsito brasileiro. Espera-se que o candidato se posicione sobre as consequências da Lei que trata com rigor o condutor alcoolizado de um veículo. Das duas uma: ou o candidato adota um ponto de vista avaliando positivamente a Lei Seca, apontando como resultado a redução, mesmo que mínima, dos acidentes de trânsito, senão, pelo menos, a conscientização que muitos brasileiros passaram a ter a partir dela, ou assume uma perspectiva mais negativa, argumentando que os números de acidentes nas cidades e nas estradas recrudesceram, ao invés de diminuírem, uma vez que a ingestão do álcool é uma entre tantas causas da situação desastrosa no tráfego de veículos, como a negligência e a imprudência de motoristas, além da falta de manutenção das rodovias brasileiras.
A segunda posição, talvez a mais próxima de nossa realidade, não exclui a primeira, porquanto a Lei Seca supostamente atingiria, repito, uma das causas de mortes no trânsito brasileiro; no entanto, tomada isoladamente, a medida torna-se estéril, haja vista que alguns mecanismos para burlar o controle e a fiscalização, como os avisos no twitter e no waze, revelam a falta de seriedade e de responsabilidade de quem dirige alcoolizado. Além disso, mesmo com o aumento das blitz policiais, o transgressor da lei encontra a leniência de outras leis que não preveem punição mais rigorosa ao infrator.
O tema, por fazer parte do cotidiano da juventude brasileira, já que a maioria das vítimas encontra-se na faixa entre 18 e 24 anos, não apresenta grande dificuldade para ser desenvolvido, mas requer do candidato atenção para não repetir frases feitas ou cair nos clichês ("o carro é uma arma", por exemplo). Quem souber argumentar com fatos, dados e elementos inferidos da coletânea de textos - sem copiá-los -, possivelmente redigirá um texto sem grandes entraves, a não ser aqueles inerentes a qualquer exame importante, como o nervosismo e a falta de tempo na organização das ideias. Fora isso, o INEP mais uma vez acrescentou aos temas já propostos no ENEM uma questão de elevada gravidade, possibilitando ao candidato refletir sobre a própria conduta ou a de seu círculo social, desde familiares, colegas de escola, amigos, até, por que não, dos legisladores brasileiros, que não promovem as mudanças necessárias para evitar a impunidade.
O tema "Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil" necessariamente deverá articular-se ao problema da ingestão de bebidas alcoólicas, apresentado como uma das causas do elevado número de vítimas no trânsito brasileiro. Espera-se que o candidato se posicione sobre as consequências da Lei que trata com rigor o condutor alcoolizado de um veículo. Das duas uma: ou o candidato adota um ponto de vista avaliando positivamente a Lei Seca, apontando como resultado a redução, mesmo que mínima, dos acidentes de trânsito, senão, pelo menos, a conscientização que muitos brasileiros passaram a ter a partir dela, ou assume uma perspectiva mais negativa, argumentando que os números de acidentes nas cidades e nas estradas recrudesceram, ao invés de diminuírem, uma vez que a ingestão do álcool é uma entre tantas causas da situação desastrosa no tráfego de veículos, como a negligência e a imprudência de motoristas, além da falta de manutenção das rodovias brasileiras.
A segunda posição, talvez a mais próxima de nossa realidade, não exclui a primeira, porquanto a Lei Seca supostamente atingiria, repito, uma das causas de mortes no trânsito brasileiro; no entanto, tomada isoladamente, a medida torna-se estéril, haja vista que alguns mecanismos para burlar o controle e a fiscalização, como os avisos no twitter e no waze, revelam a falta de seriedade e de responsabilidade de quem dirige alcoolizado. Além disso, mesmo com o aumento das blitz policiais, o transgressor da lei encontra a leniência de outras leis que não preveem punição mais rigorosa ao infrator.
O tema, por fazer parte do cotidiano da juventude brasileira, já que a maioria das vítimas encontra-se na faixa entre 18 e 24 anos, não apresenta grande dificuldade para ser desenvolvido, mas requer do candidato atenção para não repetir frases feitas ou cair nos clichês ("o carro é uma arma", por exemplo). Quem souber argumentar com fatos, dados e elementos inferidos da coletânea de textos - sem copiá-los -, possivelmente redigirá um texto sem grandes entraves, a não ser aqueles inerentes a qualquer exame importante, como o nervosismo e a falta de tempo na organização das ideias. Fora isso, o INEP mais uma vez acrescentou aos temas já propostos no ENEM uma questão de elevada gravidade, possibilitando ao candidato refletir sobre a própria conduta ou a de seu círculo social, desde familiares, colegas de escola, amigos, até, por que não, dos legisladores brasileiros, que não promovem as mudanças necessárias para evitar a impunidade.
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
Machado de Assis vegetariano: isso não é piada...
MACHADO DE ASSIS QUERIA SER VEGETARIANO
Vejam esta crônica escrita em 5 de março de 1893 na coluna "A Semana" no jornal "Gazeta de Notícias".
Quando os jornais anunciaram para o dia 10 deste mês uma parede de açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo.
Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.
Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.
Vede o nobre cavalo! O paciente burro! O incomparável jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, — e ao gato, seu parente pobre, — não diz cousa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, come-se o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo.
Enfim, chegou o dia 10 de março; quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo princípio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue, todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dous banquetes. Nos outros dias a mesma cousa.
Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.
Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirou-se ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem.
Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos.
Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 11 de março; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa
Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele repeliu a asseveração do Sr. Capelli. Não contava com o orador, que aparou o golpe galhardamente: "Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos espécimes do tipo americano”.
Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, antes ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.
ASSIS, Machado de. Obras completas. Volume III. 9. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 576-8
Vejam esta crônica escrita em 5 de março de 1893 na coluna "A Semana" no jornal "Gazeta de Notícias".
Quando os jornais anunciaram para o dia 10 deste mês uma parede de açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo.
Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.
Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.
Vede o nobre cavalo! O paciente burro! O incomparável jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, — e ao gato, seu parente pobre, — não diz cousa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, come-se o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo.
Enfim, chegou o dia 10 de março; quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo princípio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue, todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dous banquetes. Nos outros dias a mesma cousa.
Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.
Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirou-se ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem.
Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos.
Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 11 de março; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa
Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele repeliu a asseveração do Sr. Capelli. Não contava com o orador, que aparou o golpe galhardamente: "Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos espécimes do tipo americano”.
Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, antes ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.
ASSIS, Machado de. Obras completas. Volume III. 9. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 576-8
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