Quem sou eu

Minha foto
"Ao fundo sou eu, mas será verdade / que sou? O fundo é que me inventa? / Terei mesmo essa identidade / feita de tinta apenas?" Palavras que respiram por Miguel Marvilla

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

SÍNTESE DOS GÊNEROS TEXTUAIS RECORRENTES NAS PROVAS DE REDAÇÃO EM VESTIBULARES[1]


GÊNERO
CARACTERÍSTICAS
ESTRUTURA
1. Carta aberta
Formato de carta, para publicação em veículo de comunicação; contém ponto de vista sobre assunto de interesse social; existência de remetente (coletivo/individual) e destinatário (coletivo/individual); título com destinatário ou assunto: Carta aberta à população brasileira ou Carta aberta sobre a situação dos controladores de vôo; texto datado.
Introdução com apresentação do remetente e do motivo da carta aberta.
Desenvolvimento com considerações e argumentos.
Conclusão com reafirmação do propósito da carta.
Local e data com assinatura (iniciais, se remetente individual)
2. Carta argumentativa
Texto de correspondência, com formato decalcado: local e data, vocativo, corpo da carta, saudação final, assinatura.
Introdução com apresentação do remetente, do tema e da tese assumida sobre o tema. Atenção: a proposta pode pedir máscara do remetente.
Desenvolvimento com argumentos.
Conclusão com reafirmação da tese assumida.
A assinatura depende das instruções. A UNICAMP instrui que sejam as iniciais. Caso não haja qualquer orientação, usar as iniciais do próprio nome.
3. Cartão postal
Trata-se de uma simplificação da carta simples. Tem a forma de um pequeno retângulo de papelão fino, com a intenção de circular pelo Correio sem envelope; uma das faces destina-se ao endereço do destinatário, postagem do selo, mensagem do remetente; a outra contém alguma imagem, geralmente um fotografia local ou reproduçao de uma peça artística ou publicitária.
Como se trata de carta, contém: local e data, vocativo, corpo da carta, saudação final, assinatura. Aproxima-se mais de um bilhete, pois mesmo sendo missiva informal com assunto particular, circula sem envelope. A linguagem é informal e o número de linhas é limitado. Estrutura-se em:
Introdução com objetivo do cartão.
Desenvolvimento com informações, considerações ou detalhamento do objetivo do cartão.
Conclusão com reafirmação do objetivo do cartão.
4. Manifesto
Texto de apoio ou repúdio a uma questão de ordem social; programa ideológico e/ou literário (Manifesto Comunista, Manifesto Futurista...); geralmente sem destinatário; signatário individual ou coletivo; texto datado.
Introdução com apresentação do assunto.
Desenvolvimento com considerações e argumentos.
Conclusão com reafirmação do propósito do manifesto.
Local e data com assinatura (iniciais, se remetente individual)
5. Conto
Narração ficcional, com narrador, personagem, ação, espaço, tempo. Foco narrativo em 1ª ou 3ª pessoa (narrador personagem ou narrador observador)
Introdução com apresentação de personagem, cenário, tempo
Desenvolvimento com ações (conflito entre personagens)
Desfecho (solução do conflito)
6. Fábula
Narração curta, que contém uma instrução moral, em forma sintética, cujos personagens são animais que representam qualidades humanas.
Introdução com apresentação de personagens, cenário, tempo
Desenvolvimento com ações (conflito entre personagens)
Desfecho (solução do conflito)
7. Relato de viagem
Relato de experiências vividas durante uma viagem; foco de interesse mais no lugar visitado e menos nas emoções do sujeito; texto datado.
Introdução com características mais atrativas.
Desenvolvimento com a exploração de aspectos mais relevantes: belezas naturais, pontos turísticos, culinária, folclore, arquitetura, transporte etc.
Conclusão com a impressão geral sobre o lugar visitado.
8. Relato autobiográfico
Relato de experiências durante a vida, desde o nascimento até o momento da escrita; memórias, redigidas em primeira pessoa, em que o narrador destaca os fatos mais importantes de sua vida para um leitor.
Introdução com auto-apresentação — por exemplo, data e local de nascimento, nome dos pais(com máscara, no caso do vestibular, para não haver identificação na prova de redação), características físicas e psicológicas.
Desenvolvimento com ações marcantes vividas na infância, adolescência e idade atual.
Conclusão com expectativas, projetando o futuro conforme instruções da prova de redação.
9. Biografia
Relato de experiências durante a vida de uma pessoa, desde o nascimento até o momento da escrita, redigido em 3ª pessoa, em que o biógrafo destaca os fatos mais significativos da vida de uma pessoa (real) ou de um personagem (fictício) para um leitor. Existem biografias autorizadas (em que o biografado colabora com os próprios dados) e biografias não autorizadas (geralmente contendo fatos escandalosos).
Introdução com apresentação da pessoa ou do personagem — por exemplo, data e local de nascimento, nome dos pais, características físicas e psicológicas.
Desenvolvimento com ações marcantes vividas na infância, adolescência e idade adulta.
Conclusão com fatos relevantes que marcaram a vida do biografado, como seu papel social, por exemplo.
10. Diário íntimo
Registro de experiências vividas no dia; foco nas impressões, emoções e sentimentos do sujeito diante de fatos, acontecimentos e reflexões cotidianos; texto datado.
Data (dia, mês e ano)
Estrutura-padrão: introdução, desenvolvimento e conclusão.
11. Testemunho
O testemunho é um gênero que se encontra entre a autobiografia e a biografia. Depoimento em 1ª pessoa.
Estrutura-se como um tipo narrativo.

12. Notícia
Texto informativo; veiculação de um fato real que desperte interesse no leitor, expressa de maneira rápida e direta.
Introdução com apanhado geral dos fatos.
Demais parágrafos com particularização dos aspectos mais importantes. Notícias de maior extensão apresentam depoimentos de testemunhas do fato ou autoridades sobre o assunto.
13. Crônica
Registro de fato do cotidiano, a partir de experiência vivida, em que o cronista faz suas reflexões. Foco narrativo em 1ª pessoa; geralmente texto datado.
Introdução com apresentação do fato que será analisado.
Desenvolvimento com relato e reflexões do cronista.
Conclusão com reafirmação do ponto de vista adotado.
14. Diálogo argumentativo
De caráter persuasivo, visa apresentar argumentos a fim de provocar, entre os interlocutores, mudança de ideia, atitude ou comportamento; não há narrador.
Estrutura dialógica, graficamente disposta em parágrafos e travessões. Os argumentos seriam os que os interlocutores trocariam em função de uma tese e defesa dessa tese.
15. Resenha resumo ou resenha descritiva
É um texto que se limita a resumir o conteúdo de um livro, de um capítulo, de um filme, de uma peça de teatro ou de um espetáculo, sem qualquer crítica ou julgamento de valor. Trata-se de um texto informativo, pois o objetivo principal é informar o leitor.
Devem constar:
O título (no vestibular, somente se for solicitado nas instruções)
A referência bibliográfica da obra
Alguns dados bibliográficos do autor da obra resenhada
O resumo ou a síntese do conteúdo.
16. Resenha crítica*


Além de resumir o objeto, faz uma avaliação sobre ele, uma crítica, apontando os aspectos positivos e negativos. Trata-se, portanto, de um texto de informação e de opinião, também denominado de recensão crítica.

Devem constar:
O título (no vestibular, somente se for solicitado nas instruções)
A referência bibliográfica da obra
Alguns dados bibliográficos do autor da obra resenhada
O resumo ou a síntese do conteúdo
A avaliação crítica
Se for o caso, fazer comparação com outro autor (questão de vestibular).
17. Texto ou artigo de opinião*
Texto jornalístico argumentativo; tese sobre o tema dado, que será defendida com argumentos.
Introdução com tese sobre o tema.
Desenvolvimento com argumentos. Conclusão com reafirmação da tese.
18. Editorial*
Texto jornalístico argumentativo: reflete a ideologia do veículo de comunicação; geralmente não é assinado; tese sobre o tema dado, que será defendida por meio de argumentos.
Introdução com tese sobre o tema.

Desenvolvimento com argumentos.

Conclusão com reafirmação da tese.
19. Comentário crítico*
É um texto que apresenta descrição do objeto — charge, anúncio publicitário, quadrinhos — ou assunto a ser comentado. Apresenta também um aspecto avaliativo, com juízo de valor sobre o objeto ou assunto, tendo, portanto, teor dissertativo.
Introdução com descrição do objeto ou apresentação do assunto e da opinião.

Desenvolvimento com argumentos e considerações.
20. Ensaio*
Texto científico-acadêmico, de defesa de um ponto de vista, associado a um assunto mais amplo em investigação; geralmente destina-se a trabalhos de fim de semestre nos cursos de graduação e pós-graduação nas universidades brasileiras; pode ser referência a seção jornalística que apresenta ponto de vista; trata-se, portanto, da nossa conhecida dissertação; linguagem dissertativa exige objetividade, porém deve ficar evidente o ponto de vista assumido pelo ensaísta.
Introdução com tese, usando recurso técnico de parágrafo introdutório (alusão histórica, definição, divisão, citação – ótimo iniciar citando com artigo de lei, por exemplo).
Desenvolvimento com argumentos que podem ser organizados por: analogia, confronto (ótimo fazer contra-argumentação), causas e conseqüências, exemplificação, citação (inclusive argumento de uma autoridade no tema), enumeração de dados estatísticos (argumento difícil de refutar), tudo isso articulado a uma tese (é importante explicitá-la na introdução). Enunciados de questões às vezes propõem o uso de certo recurso argumentativo.
Conclusão com a reafirmação da tese, em que se faz uma síntese da argumentação, dessa vez mostrando a articulação dos fundamentos para comprovar seu ponto de vista; pode ser proposta de solução (na prova do ENEM geralmente se pede).
21. Discurso*

Trata-se de gênero discursivo produzido para ser proferido oralmente a um auditório em um evento solene. Expressa formalmente a maneira de pensar e de agir do(s)locutor(es) e sua visão acerca dos interlocutores presentes na solenidade. Por se tratar de um texto construído com o objetivo de defender um ponto de vista sobre determinado assunto, buscando o convencimento do auditório e, logo, sua adesão às ideias defendidas, é um gênero com características predominantemente expositivo-argumentativas.
Devido a essa forma de interação, o ponto de vista defendido deve ser fundamentado com explicações, razões, ilustrações, citações etc.
22. Verbete
É um gênero textual comum a enciclopédias e dicionários, seja na forma tradicional, seja na forma eletrônica. Em prova de redação, o título do texto é o termo a ser definido, explicado e exemplificado; localiza-se à esquerda do texto. O texto se inicia a linha abaixo, constituído por parágrafos. Basicamente é um texto descritivo-informativo, escrito em 3ª. pessoa, portanto sem qualquer referência subjetiva.
Constitui-se de:
Título: termo a ser definido
1º parágrafo: definição do termo; pode ser feita de forma sucinta a descrição gramatical: substantivo, adjetivo, verbo etc., bem como suas flexões.
2º parágrafo: exemplos de situação em que o termo aparece.
Dependendo da proposta de redação, pode-se também apresentar uma vantagem e uma desvantagem do uso do conceito atribuído ao termo.
23. Relatório
Trata-se de um texto informativo-descritivo, em que os redatores apresentam informações sobre atividades desenvolvidas em escolas, em ambientes de trabalho, em visitas técnicas, em projetos acadêmicos etc. Deve ser redigido de forma objetiva, sem uso da 1ª. pessoa do singular ou do plural. Geralmente o relatório é dirigido a chefes, supervisores, professores etc.
Basicamente, um relatório apresenta a seguinte estrutura:
Apresentação do projeto (público-alvo, objetivos e justificativa). Isso pode ser feito em um parágrafo.
Relato das atividades desenvolvidas e comentário(s) sobre os impactos das atividades na comunidade. Trata-se do desenvolvimento do relatório. Portanto, haveria um ou mais parágrafos para apresentar as atividades desenvolvidas e um parágrafo conclusivo, apresentando os benefícios sociais dessas atividades.
* Os textos são de caráter dissertativo, portanto possuem a mesma estrutura-padrão, consideradas as diferenças estruturais do gênero.





[1] Quadro organizado por professora Virgínia Cœli Passos de Albuquerque, com base nas provas de redação de vestibulares dos últimos dez anos.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

"Penso, Logo Sou Ateu": falso ou verdadeiro? Ou, no melhor do inglês: fake or true?

Deparei agora, no feed de notícias do Facebook, com um perfil intitulado "Penso, Logo Sou Ateu" que veicula uma foto de mulher em desespero com a seguinte legenda: "Fui debater com um ateu / Ele usou fatos, dados científicos, história, arqueologia, lógica, razão e até a própria bíblia contra mim... Isso não é justo!!!" Para não ser deselegante e iniciar uma discussão infundada (ou fundada em certezas, como quiserem) com quem postou, respondo aqui, no meu espaço, à intolerância de certo ateísmo. Antes de iniciar minha contestação à publicação, coloco-me como "livre pensadora", pois religação (ou religião) com o sagrado é um princípio independente de dogmas, sectarismos, denominações, nomeações etc.
Vamos ao título: trata-se de uma falácia, em que a premissa maior seria "quem pensa é ateu". Premissa menor: "Ora, eu penso"; "logo, sou ateu". O pensamento é válido, mas falso. Por isso, é um sofisma bem ao gosto dos socráticos. E a "certeza" da premissa maior se desgasta por ser excludente. Aí reside a falsidade... Quanto à imagem da mulher, se adotarmos uma análise semiótica, conseguiremos chegar ao nível profundo do discurso carregado de  uma ideologia que se pretende dominante e dona da verdade: a mulher desesperada por não pensar. Por que mulher? Por ser submissa e manipulável, superficial e desbotada, um ser anencéfalo e desprovido de argumentos. Por isso a frase final: "Isso não é justo!!!". Essa montagem tendenciosa e de cunho ideológico-patriarcal se rende ela mesma à bobagem que enuncia. E acrescento, sem querer ser dona da verdade: o ateu que escreveu isso não pensa. E devolvendo assim o sofisma: Não penso; logo, sou ateu. Valha-me, Jorge!

domingo, 24 de novembro de 2013

Finalmente, a apostila de resumos e análises das obras literárias UFES 2014...

Gente, custou... Mas saiu... Muitas vezes temos que adiar nosso planejamento, por conta de outras urgências, como ficar com a neta - ver um filho crescer é lindo, ver uma neta crescer é sublime! - ou recomeçar com aulas de literatura na Universidade. No entanto, já estou fazendo as cópias para os primeiros interessados. Ainda é tempo de estudar, ainda é tempo de revisar... Um grande abraço!

domingo, 27 de outubro de 2013

Sobre o tema da prova de redação ENEM/2013

Antes mesmo de ler na íntegra a prova de redação do ENEM/2013, já podemos adiantar algumas ideias para quem saiu do teste mais cedo.
O tema "Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil" necessariamente deverá articular-se ao problema da ingestão de bebidas alcoólicas, apresentado como uma das causas do elevado número de vítimas no trânsito brasileiro. Espera-se que o candidato se posicione sobre as consequências da Lei que trata com rigor o condutor alcoolizado de um veículo. Das duas uma: ou o candidato adota um ponto de vista avaliando positivamente a Lei Seca, apontando como resultado a redução, mesmo que mínima, dos acidentes de trânsito, senão, pelo menos, a conscientização que muitos brasileiros passaram a ter a partir dela, ou assume uma perspectiva mais negativa, argumentando que os números de acidentes nas cidades e nas estradas recrudesceram, ao invés de diminuírem, uma vez que a ingestão do álcool é uma entre tantas causas da situação desastrosa no tráfego de veículos, como a negligência e a imprudência de motoristas, além da falta de manutenção das rodovias brasileiras.
A segunda posição, talvez a mais próxima de nossa realidade, não exclui a primeira, porquanto a Lei Seca supostamente atingiria, repito, uma das causas de mortes no trânsito brasileiro; no entanto, tomada isoladamente, a medida torna-se estéril, haja vista que alguns mecanismos para burlar o controle e a fiscalização, como os avisos no twitter e no waze, revelam a falta de seriedade e de responsabilidade de quem dirige alcoolizado. Além disso, mesmo com o aumento das blitz policiais, o transgressor da lei encontra a leniência de outras leis que não preveem punição mais rigorosa ao infrator.
O tema, por fazer parte do cotidiano da juventude brasileira, já que a maioria das vítimas encontra-se na faixa entre 18 e 24 anos, não apresenta grande dificuldade para ser desenvolvido, mas requer do candidato atenção para não repetir frases feitas ou cair nos clichês ("o carro é uma arma", por exemplo). Quem souber argumentar com fatos, dados e elementos inferidos da coletânea de textos - sem copiá-los -, possivelmente redigirá um texto sem grandes entraves, a não ser aqueles inerentes a qualquer exame importante, como o nervosismo e a falta de tempo na organização das ideias. Fora isso, o INEP mais uma vez acrescentou aos temas já propostos no ENEM uma questão de elevada gravidade, possibilitando ao candidato refletir sobre a própria conduta ou a de seu círculo social, desde familiares, colegas de escola, amigos, até, por que não, dos legisladores brasileiros, que não promovem as mudanças necessárias para evitar a impunidade.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Machado de Assis vegetariano: isso não é piada...

MACHADO DE ASSIS QUERIA SER VEGETARIANO
Vejam esta crônica escrita em 5 de março de 1893 na coluna "A Semana" no jornal "Gazeta de Notícias".

Quando os jornais anunciaram para o dia 10 deste mês uma parede de açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo.

Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.

Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.

Vede o nobre cavalo! O paciente burro! O incomparável jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, — e ao gato, seu parente pobre, — não diz cousa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, come-se o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo.

Enfim, chegou o dia 10 de março; quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo princípio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue, todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dous banquetes. Nos outros dias a mesma cousa.

Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.

Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirou-se ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem.

Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos.

Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 11 de março; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa

Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele repeliu a asseveração do Sr. Capelli. Não contava com o orador, que aparou o golpe galhardamente: "Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos espécimes do tipo americano”.

Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, antes ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.

ASSIS, Machado de. Obras completas. Volume III. 9. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 576-8






sábado, 4 de maio de 2013

A bisa que tem Facebook



Nasceu em meados da década de 30. Como toda jovem de sua geração, recebeu uma educação doméstica primorosa, desde cozinhar os pratos mais elaborados até executar os sofisticados bordados com linha de seda, sem esquecer as lições de piano, como também as agulhas de tricô e crochê, o capricho de manter a casa limpa, a máquina de costura a pedal que muitas vezes a transformava em provedora da família; tudo isso sem negligenciar a extensa prole que educava com carinho e zelo – por vezes excessivo – mas sempre zelo. Sua profissão: prendas do lar.
Namorou cedo. Casou cedo. Teve uma festa simples, sem batom – porque o rígido pai não permitia maquiagem – sem, no entanto, deixar de ser uma das mais belas, no viço de seus dezessete anos, com direito a dama de honra, a bolo de três andares e a séquito de convidados. As noivas iam a pé para a igreja, honrando a plateia sem convite com sua passagem de princesa. Era época em que se sonhava possuir uma casa ensolarada, com cortinas esvoaçantes de voil e limpinhas e com cheiro fresco e companheiras de um ambiente feliz.
Foi feliz, mas logo, logo percebeu a realidade nada romântica da convivência. Nunca arredou de suas ideias, que ainda segue, depois de criados os filhos e nascidos os netos. Agora aguarda a chegada da terceira geração. Viúva,  cuida da saúde e não se descuida do corpo, pois a mãe sempre lhe dizia que “quem não se ajeita, por si só se enjeita”. Pinta seus cabelos, suas unhas e nunca desce de seu salto, não mais o quinze, mas no mínimo uns quatro centímetros, ancorados no modelo anabela. A passagem da vida conserva ainda a antiga beleza retratada em um pôster pendurado na parede do corredor de seu apartamento, mas no inverso de Dorian Grey, porque sua alma bondosa acrescentou-lhe as rugas e fixou-lhe o caráter de retidão no qual se espelham os familiares.
A moda: usava muito “tailleur”. Usava luvas e casquetes nos eventos mais chiques, como a ópera e os casamentos. Aderiu às calças compridas, sempre com a elegância dos clássicos de outrora. Hoje escolhe roupas e bijuterias coloridas, acessórios infalíveis para emoldurar  sua feminilidade. Mas, sobretudo – pasmem –, usa a internet. Atualizada, tem contatos no Skype e no Facebook.  Claro, com assessoria. Ainda não tem smartphone, mas sonha com um notebook ou um tablet, a exemplo de seu irmão mais velho, completamente “high tech”.  Quando faz uma postagem na timeline de parentes e conhecidos, surpreende pela atualidade.  É uma bisavó tradicional, mergulhada na contemporaneidade. Não é a única, certamente, que rompeu as barreiras que o suposto tempo poderia impor. Sim, é uma bisa que tem Facebook.
Virgínia Albuquerque
Em 4 de maio de 2013

Apostila de análise e resumo das obras literárias VESTIBULAR UFES 2014

Aviso aos interessados: nossa apostila está em fase final. A leitura demandou um pouco de tempo e a escrita não é muito fácil. Assim que estiver pronta, entro em contato com cada um de vocês. Grande abraço.